sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A “velha” e a “nova” esquerda: crônicas da ignorância histórica

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Ser anticomunista não é privilégio apenas da direita. Pelo contrário. O anticomunismo de esquerda tem raízes históricas muito fortes e sempre foi bastante atuante – pense na socialdemocracia, em especial a alemã, em sua oposição à Revolução Russa e ao Poder Soviético. Com a internet tornou-se comum seres imbecilizados, sem qualquer conhecimento mínimo da história do movimento operário, usaram uma série de mentiras, simplificações e meias verdades para atacar a o movimento comunista – o que eles chamam de “velha esquerda”.

Dentre todas as mentiras e falsificações, os mais populares me parecem ser a do marxismo eurocêntrico e do marxismo que nunca debateu e não consegue debater a questão das opressões – evidentemente que essa impressão dos temas mais populares é bem superficial, pois não é produto de uma pesquisa científica sobre o tema. Essa semana me deparei com o texto de um sujeito chamado João Pucinelli [1], onde todas as grandes mentiras e distorções sobre o movimento comunista apareciam em estado mais puro e bizarro. Aproveitando esse texto, vou realizar um desejo antigo, e debater com esse anticomunismo de “esquerda” e sua ignorância histórica que gera como frutos uma prole de espantalhos argumentativos.

Vamos respondendo parágrafo por parágrafo o texto do João. Ele começa afirmando que “”Que a "velha esquerda" é eurocentrada e colonialista a gente já sabe de cor e salteado. Culto ao Marx, fetiche por cada virgula de qualquer acontecimento histórico na Europa, reprodução do modelo operário padrão””. O caráter eurocentrado e colonialista da “velha esquerda”, isto é, os comunistas, estaria no seu “culto” a Marx. Karl Marx era um homem europeu do século XIX. Militante do movimento operário, dirigente da I Internacional e grande teórico revolucionário, Marx dedicou grande parte da sua vida a um único objeto de estudo: compreender a dinâmica de funcionamento do modo de produção capitalista.

Na época de Marx a produção capitalista era restrita a pequenas parcelas do mundo, contudo, África, Ásia e América Latina estavam submetidas – de formas diferentes – ao sistema colonial-capitalista e a tendência evidente, mesmo naquela época, seria a universalização do capitalismo. Em O Capital: crítica da economia política, o livro fundamental de Marx, nosso autor diz que pretende estudar o modo de produção capitalista em suas leis internas de funcionamento e não o capitalismo num país específico, isto é, numa formação social concreta – como França, por exemplo. Marx diz explicitamente que quando cita a Inglaterra não significa que seu estudo é sobre o país, mas sim que a referência é uma forma de ilustrar a dinâmica do capitalismo numa situação concreta. O que isso significa? O materialismo histórico-dialético criado por Marx e Engels nos legou uma teoria que permite compreender e criar as bases de superação do modo de produção capitalista! Existe hoje capitalismo em todos os continentes do mundo: África, Ásia, Oceania, América etc.

Isso significa que basta eu abrir O Capital e compreender a dinâmica social do continente africano? De forma nenhuma. Existe no marxismo uma coisa chamada dialética entre o particular e o universal. O que significa isso? A divisão da sociedade entre detentores dos meios de produção e portadores apenas da sua força de trabalho, sendo os últimos os explorados, os que têm sua mais-valia expropriada, é universal, é uma relação social própria do capitalismo em qualquer lugar do mundo, mas, ao mesmo tempo, a forma concreta de manifestação desse universal responde as particularidades de cada local: a forma-política, o tipo e o nível de desenvolvimento das formas produtivas, a cultura política e organizativa da classe trabalhadora e da classe dominante, as formas interventivas do Estado na reprodução das relações de produção, a divisão campo-cidade, a composição de gênero e étnico-racial da classe trabalhadora etc. são particularidades próprias de cada formação social (cada “país”) e nessas particularidades que a universidade – exploração do capital sobre a classe trabalhadora – se expressa. No Brasil e na Inglaterra a relação de exploração é a mesma e ao mesmo tempo é diferente devido às particularidades de cada formação social.

Compreendendo isso é que os melhores marxistas da África, Ásia e América Latina nunca fizeram uma transposição mecânica das análises de Marx, Engels ou Lênin para suas realidades locais, ao contrário, procuraram compreender como o universal (dinâmica capitalista) se expressa concretamente na particularidade de cada país e continente. É por isso que Mao Tse-Tung, Malcolm X, Huey Newton, Chu Enlai, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini, Mariátegui, Florestan Fernandes, Ana Montenegro, Zuleide Faria de Melo, Kim Il-sung, Thomas Sankara, Esteve Biko, Angela Davis etc. em suas atuações políticas e/ou teóricas conseguiram ter uma análise justa das contradições sociais que impõe o desafio da ação política revolucionária. Dizer que o marxismo é eurocêntrico desconsiderando os milhões de mulheres e homens dos países periféricos que tiveram e têm o marxismo como principal referencial teórico e prático de libertação é uma grande simplificação que descamba para a mentira e a falsificação.

Mas nosso autor, o João, também diz que o marxismo é colonialista. Bem, uma teoria crítica não pode ser colonialista. Colonialismo é um complexo político-econômico que envolve a dominação de vastos territórios por Estados imperialistas com intuito de garantir o lucro dos grandes monopólios e do capital financeiro e melhor posicionar-se na concorrência interimperialista. Uma teoria crítica e revolucionária, como o marxismo, não pode ser “colonialista”, mas, no máximo, servir de base ideológica de justificativa para o colonialismo.

Na história do marxismo a II Internacional, em suas tendências majoritárias, infelizmente apoiaram o colonialismo dos Estados europeus embebidas no mito da exportação da civilização. Mas não deixa de ser sintomático que todos os partidos da II Internacional que apoiaram o colonialismo abandonaram poucos anos depois o marxismo revolucionário, a dialética e o materialismo histórico e aderiram a um positivismo mecanicista de base epistemológica kantiana. A III Internacional, ou Internacional Comunista, que surge como uma resposta a falência da II Internacional, toma o combate ao colonialismo como uma prioridade absoluta do movimento operário e a partir daí, durante todo século XX, o movimento operário de orientação comunista tornasse o principal sujeito político de oposição ao colonialismo-imperialista. Um pequeno exemplo da contribuição comunista na luta anticolonial pode ser lida abaixo:

A União Soviética e os partidos aliados a ela desempenharam um papel crucial na formação política e ideológica dos quadros do movimento [de libertação africana], tendo sido crucial em Moscou no ano de 1930, a escola de Stálin, intuindo preparar quadros marxistas. As repercussões da crise econômica que sacudiam o mundo possuíam uma natureza favorável à tarefa do movimento anticolonial (...). Após ter traçado os mecanismos e as vias para colaboração com os movimentos anticolonialistas, o mundo socialista engajou-se em um programa de apoio ativo à descolonização da África, sob a forma de uma assistência material e diplomática, oferecida em conformidade com o princípio do marxismo-leninismo, segundo o qual, o mundo socialista deveria ajudar àqueles que aspirassem à descolonização (...). A URSS assinou acordos com cerca de quarenta países africanos. Uma das mais interessantes dimensões desta cooperação dizia respeito ao ensino e à pesquisa: formação de quadros africanos na URSS, envio de professores e pesquisadores soviéticos às universidade e centros de pesquisa africanos. Aproximadamente 30.000 africanos formaram-se no sistema soviético de ensino superior [2]

Na continuação de sua verborragia de mentiras, João diz que “pensadores do sul do mundo, invisibilizando modos de vida e cultura indígenas e africanas, subalternizando práticas, narrativas e trajetórias dos povos originários”. Bem, Che Guevara, Fidel Castro e Mariátegui – para ficar apenas em três exemplos – são “pensadores do Sul” e só um completo desonesto para afirmar que a cultura política comunista os “invisibilizou”. O camarada José Carlos Mariátegui, por exemplo, é famoso por ter sido um dos primeiros marxistas, ainda nos anos 20 do século passado, a pensar a contribuição das práticas culturais e produtivas coletivistas dos povos originários na construção do socialismo nas Américas.

Nosso autor continua seu texto demonstrando que ignorância histórica não tem limites. Afirma que a “nova esquerda” – o MST, a esquerda católica, o movimento feminista, o movimento negro etc. – trouxeram para a luta política “”as cantigas, as cirandas e os sambas de roda”” e que a “velha esquerda” passou a taxar essas práticas de anti-revolucionárias. Bem, é uma GRANDE MENTIRA conceber o movimento feminista e negro como dissociado da luta comunista. Sem me estender nesse ponto, gostaria apenas de pontuar que foi a União Soviética que as mulheres conseguiram, primeira vez no mundo, igualdade jurídica, direito a voto, direito ao divorcio e ao aborto, ascensão a cargos de direção política e inserção não subordinada no mercado de trabalho contando com férias, licença-maternidade, salário igual ao dos homens etc. [3]

Sobre a relação orgânica entre luta comunista e luta contra o racismo, basta citar um longo trecho sobre o combate ao apartheid no Sul dos EUA – por décadas um dos maiores símbolos do racismo no mundo:

"Nada tinha me preparado totalmente para o que eu encontrei no Alabama. Os testemunhos e memórias nos arquivos, a até mesmo a própria paisagem constituía a prova viva de que uma cultura política distinta da esquerda euro-americana, mas sim uma enraizada nas tradições afro-cristãos e na cultura negra de raíz dominou o Partido Comunista do Alabama. Era a evidência surpreendente esmagadora que me fez deixar um monte das minhas suposições sobre a cultura do movimento marxista-leninista para trás ... Eu não estava preparado para pessoas como Lemon Johnson, um ex-membro da Share Croppers Union (União do "Campesinato" Compartilhada) liderada por comunistas. Em Dezembro de 1986, visitei Johnson em sua casa na zona rural do condado de Montgomery ... Ele me contou histórias sobre a greve de 1935 dos catadores de algodão, da promessa de Stalin para enviar tropas para Mobile para ajudar os negros caso as coisas saíssem do controle, e também sobre a noite que um grupo bem armado de mulheres partiram para vingar seus camaradas que tinham sido espancados ou mortos durante a greve. Quando perguntei para o Sr. Johnson como o sindicato conseguiu ganhar algumas de suas exigências, sem a menor hesitação, ele enfiou a mão na gaveta de sua mesa de cabeceira e tirou uma cópia claramente muito desgastada por uso do ‘Que Fazer?’ de Lenin e uma caixa de balas de espingarda, sentou firmemente na cama ao meu lado, e disse: “É isso aqui, a Teoria e a Prática, foi assim que nós fizemos, com Teoria e Prática.” [4]

Pensar o “movimento feminista e negro” como algo abstrato, como um ente que nunca teve relação com o movimento comunista, como podemos ver, é uma grande besteira. A “nova esquerda”, esses meninos criados em prédio que acham que estão inventando a roda, juram que são os primeiros a inserir a cultura como instrumento de luta política. Ledo engano. Falando apenas do Brasil – para não deixar o texto longo – o Partido Comunista Brasileiro (PCB) tem uma longa e bela história de atuação cultural. O PCB teve em suas fileiras poetas, literatos, sambistas, dançarinos, teatrólogos, mestres de cultura popular etc. Já organizou desde grandes campeonatos de futebol passando por desfiles de escolas samba no carnaval até festivais de cultura afrobrasileira e de terreiro. Aqui também é necessária uma grande citação para refutar as mentiras de sempre:

Jorge Amado, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Edison Carneiro, Cândido Portinari, Dorival Caymmi, Procópio Ferreira, Nélson Pereira dos Santos, Oscar Niemeyer, o maestro Francisco Mignone, o jornalista Pedro Mota Lima, o cronista Alvaro Moreyra, o pianista Arnaldo Estrela e o cientista Mário Schemberg faziam parte do respeitável grupo de intelectuais filiados ao PCB.
Os intelectuais e os artistas do PCB colocavam em prática a política cultural do partido, baseada no realismo socialista, modelo estético stalinista que chegou ao Brasil na segunda metade dos anos 40. A produção de uma arte "genuinamente" proletária era um dos principais instrumentos de educação política das massas. Cabia aos intelectuais do partido alfabetizar os "camaradas" iletrados e ministrar "aulas de conhecimentos gerais", além de esclarecer pontos fundamentais da teoria marxista-leninista. Teatro, cinema, cartazes, exposições, conferências, poemas: todos os recursos materiais e humanos disponíveis eram utilizados a serviço da causa comunista.
Dispondo de uma estrutura bastante razoável, a imprensa comunista nos anos 1945-1947 cresceu vertiginosamente. O partido contava com diversos jornais e revistas, além de duas editoras, o que deu um grande impulso ao trabalho de divulgação do comunismo no Brasil. Voltado para as massas, o diário comunista Tribuna Popular, de circulação nacional, chegou a tiragens de 50 mil exemplares. Veiculava notícias das agências comunistas internacionais, publicava matérias sobre o movimento operário e a luta camponesa, mas também dava substancial espaço para o entretenimento, visto como um importante instrumento de educação política das massas. Falava-se de cinema, teatro, esportes (com destaque para o futebol), música, notas sociais, fofocas sobre políticos e personalidades em evidência. Os anunciantes, em muitos casos, buscavam uma associação entre os produtos e a linha política do partido, como no caso do "Sabão Russo - contra erupções, espinhas e panos" ou dos perfumes Cavaleiro da Esperança. Na compra dos perfumes por atacado, o consumidor era contemplado com folhinhas com retrato de toda a bancada comunista na Constituinte de 46.
O samba, reconhecido nos anos 40 como uma das maiores formas de expressão artística popular, fruto de um complexo processo que Hermano Vianna chamou de "mistério do samba", também foi privilegiado pelos comunistas. É amplo o espaço dedicado ao mundo do samba na Tribuna Popular. As colunas "O Povo se Diverte" e "O Samba na Cidade" eram publicadas com regularidade. Notas sobre a agenda e os preparativos dos bailes carnavalescos, cartas de leitores sobre o carnaval, homenagens feitas pelas agremiações carnavalescas à Tribuna Popular, divulgação dos assuntos de interesse da União Geral das Escolas de Samba (UGES) faziam do jornal comunista um espaço de participação e representação do mundo do samba. Um forte vínculo ideológico estabelecia-se entre a UGES e o Partido Comunista [5]

A certa altura do texto, depois de criar espantalhos que já foram refutados com as citações acima, João diz que a “revolução” dele será “com os Orixás”. Nosso “amigo” não deve saber, mas a primeira vez que o Estado brasileiro reconheceu juridicamente o direito de culto das religiões de matriz afrobrasileira foi na Constituinte de 1946, com projeto apresentado pelo deputado Jorge Amado do... PCB. O comunista Jorge Amado tinha fortes ligações com o povo de terreiro da Bahia (assim como todo PCB no estado) e o negro, igualmente baiano e comunista do PCB, Carlos Marighella, em belo discurso de defesa do projeto, disse:

Nós, comunistas, sabemos respeitar as religiões; somos pela liberdade completa de consciência e não desejamos, de forma alguma, que essa liberdade seja utilizada pelos dominadores, pelos fascistas, pelos reacionários, pelos senhores feudais para acorrentar o nosso povo, miseravelmente, como o têm feito [6]

Sabemos que as religiões de matriz africana não tem liberdade de culto de fato no Brasil, mas ao menos a “liberdade jurídica”, por mais limitada que seja, veio com participação fundamental da luta comunista.

Podemos caminhar para a conclusão. O que João “considera” como atributos da “nova esquerda” não passa de práticas políticas tradicionais e que de formas variadas se mantém no movimento comunista. O PCB, por exemplo, longe de achar o samba contrarrevolucionário considera primordial a ação política no âmbito da cultura e constrói em vários estados, dentre outras iniciativas, o bloco Comuna que Pariu [7] – a “nova esquerda” não inventou o uso da cultura como instrumento da luta política, no máximo vulgarizou esse uso. A “velha esquerda” só existe nas brumas da ignorância de nosso “amigo” que acha que está inventando a roda, criando o novo, mas que deveria antes de tudo pegar bom livro de história e parar de passar vergonha na internet.



[2] – (História Geral da África - Harris e Zeghidour, 2000. p. 968, 970 e 972).
[3] –http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=676&id_coluna=10
[4] – Robin Kelley, no prefácio do 25º aniversário de Hammer and Hoe: Alabama Communists During the Great Depression 
[5] – http://www.academiadosamba.com.br/memoriasamba/artigos/artigo


[7] – http://blogdaboitempo.com.br/2016/02/11/o-bloco-comuna-que-pariu-como-fenomeno-cultural-e-politico/
Fonte: http://makaveliteorizando.blogspot.com.br/2016/02/a-velha-e-nova-esquerda-cronicas-da.html

As bases sociais das novas direitas




La Jornada

Uma nova direita está emergindo no mundo e também na América Latina, região onde apresenta perfis próprios e uma nova e inédita base social. Para combatê-la, é necessário conhecê-la, desfazer-se de conceitos simplistas e entender as diferenças com as velhas direitas. 

Maurício Macri é bem diferente de Carlos Menem. Este introduziu o neoliberalismo, mas era filho da velha classe política, a ponto de respeitar algumas normas legais e tempos institucionais. Macri é filho do modelo neoliberal e comporta-se segundo o modelo extrativo, fazendo do despojo seu argumento principal. Não lhe treme a mão na hora de passar por cima dos valores da democracia e dos procedimentos que a caracterizam.


Algo similar pode ser dito da direita venezuelana. Trata-se de alcançar objetivos de qualquer maneira. O modo de operar da nova direita brasileira se diferencia inclusive do governo privatizador de Fernando Henrique Cardoso. Hoje suas referências são personagens como Donald Trump e Silvio Berlusconi, ou o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, militarista e guerreador que não respeita nem o povo curdo nem a oposição legal, cujas sedes e comícios são sistematicamente atacadas.


Essas novas direitas tem Washington como referência, mas é de pouca serventia pensar que atuam de modo mecânico, seguindo as ordens emanadas de um centro imperial. As direitas regionais, sobretudo as dos grandes países, tem certa autonomia de vôo em defesa de interesses próprios, principalmente aquelas que se apóiam em um empresariado local mais ou menos desenvolvido.  ,


Contudo, o que é realmente inédito são os amplos apoios que conseguem entre as massas. Como já foi dito antes, nunca antes a direita argentina tinha chegado à Casa Rosada via eleitoral. Essa novidade merece alguma explicação que não pode ser concluída aqui neste breve espaço. Tampouco parece adequado atribuir todos os avanços da direita aos meios de comunicação. Que razões há para sustentar que os votantes da direita são manipulados e os da esquerda são votos conscientes e lúcidos?



Há duas questões que seria necessário selecionar antes de entrar em uma análise mais ampla. A primeira são as maneiras de atuar, com o autoritarismo quase sem freios nem argumentos. A segunda, as razões do apoio de massas, que inclui não somente as classes médias, mas também uma parte dos setores populares.  


Sobre as decisões autoritárias de Macri, o escritor Martin Rodriguez sustenta: O macrismo atua com um Estado Islãmico: sua ocupação do poder significa uma espécie de profanação dos templos sagrados kirchneristas (Panamamericana,com, 28/01/16). As demissões em massa já efetivadas se apóiam na firme crença das classes médias de que os funcionários públicos são privilegiados que recebem sem trabalhar, e o custo político dessas decisões impactantes até agora tem sido muito baixo.


A comparação com os modos do Estado Islâmico soa exagerada, mas tem um ponto de contato com a realidade: as novas direitas chegam arrasando, atropelando tudo o que se atravesse em seu caminho, desde os direitos adquiridos pelos trabalhadores até as regras institucionais do jogo. Para eles, serem democráticos significa contar as células eleitorais nas urnas a cada quatro ou cinco anos.  


A segunda questão é compreender os apoios conseguidos entre as massas. O antropólogo Andrés Ruggeri, pesquisador sobre empresas recuperadas, destaca que a direita pôde construir uma base social reacionária capaz de mobilizar-se baseada nos setores mais retrógrados da classe média, setores que sempre existiram  e que nos anos 70 apoiaram a ditadura argentina (Diagonal, 13/02/05).Essa base eleitoral está ancorada em votantes/consumidores, que adquirem um voto com se fosse um produto de mercado.          


Ele considera que o grande erro do governo de Cristina Fernández consisitiu, em vez de incentivar um movimento popular organizado, em promover um conjunto social desconectado, individualista e consumista, que além disso pensou que as conquistas das lutas de 2001 e as melhorias sociais conseguidas nestes últimos 12 anos era direitos adquiridos que não estavam em risco. Convencê-los do último foi uma grande conquista da campanha da direita, chave para o seu sucesso (Diagonal, 13.02/16).    



Hoje as classe médias são muito diferentes do que eram nos anos 60. Elas já não se referenciam nas camadas de profissionais que se formaram nas universidades estatais, que liam livros e continuavam estudando quando terminavam seus cursos superiores; aspiravam trabalhar por salários médios em repartições públicas, e se socializavam nos espaços públicos onde confluíam juntamente com os setores populares. As novas classes médias tem os mais ricos como referência, anseiam morar em bairros privados, longe das classes populares e do burburinho urbano, são profundamente consumistas e receiam o pensamento livre.   


Se uma década atrás parte dessas classes médias bateu panelas contra o corralito do ministro da Economia, Domingo Cavallo, e em algumas ocasiões agiram com os desempregados (piquete e caçarola, a luta é uma só, era o lema de 2001), agora só se preocupam com a propriedade e a segurança, e acreditam que a liberdade consiste em comprar dólares e passar férias em hotéis de cinco estrelas.


Essas classes médias (e parte dos setores populares) estão culturalmente modeladas pelo extrativismo: pelos valores consumistas promovidos pelo capital financeiro, tão distanciados dos valores do trabalho e do esforço que a sociedade industrial promovia há apenas quatro décadas.


Os defensores do modelo neoliberal conseguem uma base de apoio composta por entre 35% e 40% do eleitorado, como mostram todos os processos dos países da região. Frequentemente não sabemos como enfrentar essa nova direita. Não é agitando contra o imperialismo que a derrotaremos, mas sim mostrando que se pode gozar a vida sem cair no consumismo, no endividamento e no individualismo.

Via Rebelión

Raúl Zibechi
Tradução do espanhol: Renzo Bassanetti

Por que se teme ao comunismo?


A Comuna de Paris mostrou a Marx que não basta tomar o estado, há que destruí-lo rompendo a máquina burocrática e militar

Observando o avanço desenfreado das pautas da direita em todo o planeta, com a também crescente fascistização da vida, via as epidêmicas redes sociais, me assalta uma certeza: o comunismo, mais do que uma necessidade política, é uma necessidade biológica. E, diante da realidade, essa forma de organizar a vida aparece-me como a única alternativa possível para os seres humanos. Alguém pode dizer que sou uma louca, quando tudo parece apontar para um retorno inexorável dos tempos mais sombrios, mas, posso mostrar que não. 

Imaginem-se na baixa idade média, quando a violência contra os pobres recrudesceu, uma vez que os senhores feudais viram que as mudanças causadas pelo nascimento dos burgos eram profundas. Naquelas horas noas, de angústia e violência, quem arriscaria dizer que estava em processo de consolidação uma nova forma de viver que daria fim ao feudalismo? Os loucos? Não! Os que faziam boas análises da realidade.

O mundo atual, capitalista, imperialista e monopólico tem como base uma equação simples: para que um viva, outro tem de morrer. Isso significa que é, por natureza, destruidor e violento. Se no mundo antigo, a escravidão era garantida pela força de uns poucos e no mundo feudal a servidão se mantinha pelo terror dos senhores da terra, no capitalismo os escravos modernos – assalariados – são mantidos também pela força da repressão policial e burocrática. E é comum, a história nos mostra, quando um sistema está ruindo, a repressão a violência contra os de baixo aumentar consideravelmente. É a tentativa desesperada da classe dominante para manter o poder.

E o que vemos hoje no mundo? Uma violência exacerbada contra tudo aquilo que possa representar uma ameaça ao sistema capitalista de reprodução da vida. Qualquer gritinho de protesto já é considerado terrorismo e a força do braço armado do poder cai sobre as gentes com precisão. É um tempo de extermínio. Até no Brasil, onde o tal do “terrorismo” raramente deu as caras, os deputados aprovaram no dia 24 de fevereiro uma lei anti-terrorismo. E com base no quê? Numa suposta possibilidade de aparecer algum “deles” nas Olimpíadas. Piada? Não! Medo.

A classe dominante mundial está com medo. E isso é bom. Se, por um lado, esse medo recrudesce a violência oficial, por outro, mostra que há um pequeno buraco na represa, como no antigo conto holandês. E o sistema tenta conter a avalanche, matando, desaparecendo, trucidando, fazendo guerra.
Diante desse quadro, só nos resta o comunismo. E uma das coisas que mais me impressiona é ver alguém chamando outro alguém de comunista como se fosse uma coisa ruim. Ou ainda, falar do comunismo como se fosse o pior que pudesse acontecer na terra. Como isso poder ser possível? Quem em sã consciência pode achar que o comunismo é ruim? Pois para responder essa questão, proponho o debate de alguns elementos que compõem o comunismo, para que, sem preconceito, possamos definir o que de bem e bom pode ter num regime como esse.

A ideia de um mundo justo, no qual todos possam ter vida digna não é coisa do alemão Karl Marx, tão demonizado. Ela aparece bem antes dele em escritos de tantos filósofos, inclusive no mundo oriental. Mas, claro, é Marx quem aponta o comunismo como um sistema de organização da vida que só pode acontecer depois que sejam desvendados e superados os terrores do mundo capitalista, que ele tão bem visualizou. A partir do estudo sobre como se expressam e se concretizam no mundo real as relações de produção do sistema capitalista, Marx concluiu que não podia ser possível ao humano viver nessas condições. Ele não descobre a luta de classe, ele a põe em foco.

Assim, segundo ele, uma vez que os trabalhadores desvelassem o véu da alienação que os mantêm presos a um sistema que oprime e mata, a única possibilidade seria a construção de uma forma autônoma e livre de viver, na qual sequer o estado seria necessário. Isso é o comunismo.

Nessa forma de organizar a vida não haverá uma classe dominando a outra. Todos serão livres e administrarão a produção das coisas para o bem-viver. Cada um trabalhará conforme sua condição e receberá conforme sua necessidade. Não haverá divisão entre trabalho braçal e intelectual e todo o trabalho será considerado digno. Se a pessoa for trabalhar como lixeiro e tiver oito filhos para sustentar, ele receberá o suficiente para isso. Ninguém precisará mendigar, migrar, fugir, se prostituir, se destruir. O estado não será necessário, porque ele existe apenas como expressão de dominação de uma classe sobre a outra. Se não houver classes, para que estado? “Poderíamos empregar em vez de estado, a palavra comunidade”, diz Engels. 

Aí se pode dizer: isso é uma bobagem. Tem que ter organização, tem que ter direção, tem que ter ordem. Mas, quem diz que não haverá? Haverá tudo isso, mas sem que alguém oprima o outro. Se cada um receber conforme a necessidade não será necessária a hierarquia entre os trabalhadores. O que hoje está numa posição de organizador da produção e do trabalho, amanhã pode não estar. E se está, vai receber o que precisa para viver. Nem mais, nem menos. O cargo que ocupa não lhe dará poderes sobre o outro. Não haverá patrão, uma vez que os bens produzidos serão coletivos, assim como a terra. E se tudo for assim, tão bom, haverá festa e haverá beleza, essas coisas doces, necessárias ao espírito. Essa é a ideia do comunismo evocada por Marx, que, é óbvio, irá se construindo e aprimorando pela ação das gentes.

Alguém dirá: isso é um sonho. O ser humano não consegue ter maturidade suficiente para viver assim, livre, sem patrão. Ora, no tempo da escravidão, dizia-se que os escravos morreriam sem o dono. No tempo da servidão, dizia-se que os servos não existiriam sem os senhores feudais. E, se foram os donos de gente, e, se foram os senhores feudais. Que passou com a humanidade? Avançou. Por que raios, então, a humanidade não iria dar esse salto de qualidade? Todas as retrospectivas histórias mostram que sim.

Agora, é fato que o comunismo não se fará em um passe de mágica, muito menos por decreto. Marx, Engels e Lenin escreveram muito sobre isso. Será necessário um tempo de transição, que é o socialismo. Esse tempo de transição preparará o caminho para o comunismo, a hora em que tudo será comum, comu-nitário. No socialismo ainda existem as classes, mas aí quem domina é a classe trabalhadora. E também será necessária a força, a burocracia, o estado. 

Por isso não faz sentido a gritaria dos capitalistas contra propostas como as de Cuba, por exemplo. É um governo forte, um estado forte, no qual quem domina são os trabalhadores. Na luta de classes cubana, pela revolução, venceram os trabalhadores. Eles comandam agora, e não a burguesia. Ah, mas eles são truculentos, violentos, tem presos políticos. Sim, são violentos, como eram violentas as forças que submetiam os trabalhadores antes. Quem não se lembra da ditadura de Batista? Ah, mas então é o dente por dente? Não. É porque ainda não é o comunismo, não há ainda a maturidade necessária para esse modo de organizar. Precisa ter Estado, precisa ter a organização hierárquica. E se o estado é o instrumento de dominação de uma classe sobre a outra, essa dominação é a dos trabalhadores sobre a burguesia. Até que todos estejam prontos para o salto, a nova ordem, o novo mundo, o mundo necessário. O socialismo é um período em que vão se depurar os projetos.

Assim que o comunismo, volto a dizer, é uma necessidade biológica. Porque nós, os humanos, temos esse desejo pelo que é bom, pela festa, pela beleza. Esse é o nosso propósito. Não é possível que a gente aceite, como raça, viver como estamos vivendo agora: oprimidos, violentados, massacrados, consumindo o planeta. Como os escravos e os servos nós também avançaremos para um tempo melhor. É infalível. 

Por isso vamos caminhando, pavimentando essa estrada de maravilhas. Talvez nós mesmos não venhamos a viver nesse mundo sonhado. Mas, não importa. Para ele estamos indo, inexoravelmente, e ele já existe dentro de todos os que o acreditamos possível. Como o casulo se transforma em borboleta. Assim será!
http://eteia.blogspot.com.br/2016/02/por-que-se-teme-o-comunismo.html

A Transparência e a transparência da mídia brasileira

A grande mídia reclama para si credibilidade. Contudo, o que entrega na prática é um produto opaco contaminado de distorções e inverdades. 

João Feres Júnior, Carta Maior

Escrever sobre a mídia brasileira é uma atividade que exige do redator com algum senso crítico uma resiliência inumana, pelo menos um estômago reptiliano, para suportar a total falta de escrúpulos e falta de profissionalismo jornalístico que impera nas redações dos grandes veículos noticiosos de nosso país. O caso que quero tratar aqui é o da recente onda de publicações acerca da ONG internacional Transparency Internacional e o “escândalo da Petrobrás”. O Estadão dessa vez foi mais longe que a concorrência. Um editorial do dia 12 de fevereiro abre com o seguinte período: “Entre muitas outras proezas fantásticas, todas elas carregadas nas tintas da mistificação e do ilusionismo, o lulopetismo gaba-se de ter logrado projetar o Brasil no cenário internacional”.

De cara já impressiona o nível elevado de politização do texto, e aqui me refiro à politização no sentido do estabelecimento de campos de exclusão separando o eu que fala de seu inimigo. Essa concepção da política como guerra, quando praticada no campo do discurso, vem sempre acompanhada de farta linguagem pejorativa. Só nesta curta passagem temos “proezas fantásticas” com sabor claramente irônico, “mistificação”, “ilusionismo” e “lulopetismo”. Não é somente o tom vitriólico da overture, que mais faz lembrar um panfleto incendiário de extrema esquerda ou extrema direita, mas também o uso de termos como “lulopetismo”, que foi cunhado com o intuito explicito de ofender e rebaixar tanto Lula quanto o PT. O Wiktionary traz a seguinte definição: “petismo com o culto à personalidade de Luiz Inácio Lula da Silva”. Logo em seguida ilustra o uso do termo com uma citação de Ronaldo Caiado.

Que os adversários políticos de Lula e do PT façam isso é de se esperar, pois batalhas terminológicas são parte da política inclusive em regimes democráticos. Agora, que a grande mídia se utilize do termo com abandono isso é sinal alarmante do nível elevado de sua politização ou, porque não dizer, de partidarização. O termo não é usado somente por jornalistas militantes do quilate de Augusto Nunes e Merval Pereira, mas também em editoriais dos jornais O Globo e Estado de S. Paulo.

O editorial do Estadão então prossegue argumentando que a única projeção no cenário internacional de verdade que o “lulopetismo” logrou foi fazer do escândalo de corrupção da Petrobrás o “segundo maior esquema de desvio criminoso de recursos públicos do mundo”, segundo pesquisa divulgada pela “ONG Transparência Internacional”. Mantendo o tom de agressão, o texto segue dizendo que o “escândalo do petróleo” é “emblemático da corrupção generalizada que, hoje se sabe, tomou conta da administração federal a partir da determinação de Lula e sua tigrada de viabilizar, fosse como fosse, o projeto de perpetuação do PT no poder”; e que o “grande legado” de Lula foi “a inoculação da administração com o vírus da maracutaia”. Novamente uma enxurrada de termos pejorativos, agora acolchoando a tese de que foram Lula e o PT que criaram a corrupção na administração pública em nosso país. Tal tese não resiste ao exame mais superficial da história recente do Brasil, ou mesmo ao estudo dos autos das Operações Lava Jato e Zelotes, nos quais, só para citar um exemplo, Aécio Neves já foi citado por três delatores diferentes como receptor de propinas milionárias, isso sem falar do ex-presidente de seu partido, o PSDB, Sérgio Guerra. Ora, é compreensível que uma pessoa mistificada pela ignorância possa aderir a tal tese, mas um editor de grande jornal, com o conhecimento que essa posição exige, adotá-la dessa maneira é sinal inequívoco da conversão da prática jornalística em instrumento de ação política.

Mas o pior ainda está por vir. Lá pelo meio do texto, o editor do Estadão volta com a mesma referência do início: “Mas é preciso levar em conta que a pesquisa feita pela Transparência Internacional ...”. Paremos aqui. Ora, para refutar a acusação de que Lula e o PT inventaram a corrupção uma pessoa precisa fazer algum esforço para buscar fontes alternativas de informação ou reavivar sua memória do passado já distante. Mas este editorial contém uma inverdade muito mais flagrante. Ao contrário do que ele afirma duas vezes, a ONG Transparência Internacional (TI), que produz entre outras coisas um índice de percepção da corrupção em cada país, não fez pesquisa alguma, mas sim uma votação em seu site.

Como quase sempre, o diabo mora nos detalhes, e para saber os detalhes é preciso investigar, coisa que a grande mídia nacional se privou de fazer neste caso. A diferença entre pesquisa e votação é grande. Só para nos atermos à TI, seu Índice de Percepção da Corrupção tem como base outros índices elaborados por instituições que ela, TI, considera idôneas. Tais instituições elaboram seus índices baseadas na opinião de experts, por meio de procedimentos que o site da própria TI não esclarece. Mas a notícia alardeada não tem nada a ver com o índice. Ela é produto de uma nova iniciativa da TI chamada Unmask the Corrupt, dentro da qual a ONG decidiu fazer uma votação aberta aos internautas dos maiores casos de corrupção no mundo, com um pequeno detalhe, a própria TI forneceu a lista de 15 casos para serem votados, como me informou uma de suas funcionárias. Dos 15 casos escolhidos pela TI só o Escândalo da Petrobrás era brasileiro, os outros todos de países tão díspares quanto EUA, Ucrânia, Angola, Líbano e Guiné Equatorial.

A essa altura do campeonato o leitor mais crítico começa a duvidar dos motivos não somente da mídia nacional, mas também da Transparência Internacional. Como uma ONG cujo principal capital deve ser a credibilidade faz uma votação desse tipo? Qual o significado possível do resultado dessa votação? Ora, até as pedras do chão sabem que pouquíssimos internautas teriam conhecimento de todos esses casos de corrupção. Não existe uma aldeia global de internautas com informação total. Pelo contrário, o internauta tende a conhecer muito mais o que acontece em seu país do que em outros países do mundo, particularmente notícias de corrupção, que são geralmente matéria de política nacional. Da lista da TI somente dois casos atraíram cobertura internacional, o da FIFA e do vice-presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, que recebeu intensa cobertura da mídia internacional em língua inglesa devido aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos no país. Isso, juntamente com o fato da Ucrânia ter uma população grande (45 milhões de habitantes) e estar polarizada politicamente explica o caso Yanukovych ter vencido a votação. Mas como explicar o segundo lugar da Petrobrás?

Não é difícil. A cobertura do caso Petrobrás na mídia internacional não é intensa. Ou seja, é muito razoável supor que os votos no caso tenham vindo esmagadoramente de internautas brasileiros. Agora, a comparação entre as nações-sede dos casos já explica quase tudo. De um lado Brasil, mais de 200 milhões de habitantes, quinto país no mundo em número de usuários de internet (à frente de Rússia, Alemanha, França e Reino Unido) de outro Portugal, República Dominicana, Tunísia, Angola, Chechênia, Líbano, Panamá, Egito, Mianmar, Guiné Equatorial e Ucrânia. Como seria possível que internautas desses países, muitos deles extremamente pobres e carentes no acesso à internet, poderiam competir com os internautas brasileiros em tal votação? Os dois casos corrupção escolhidos pela TI em países mais populosos que o Brasil são o de uma companhia pública na China e outro do estado do Delaware nos EUA. Mas estes também não são competição. A China restringe fortemente o acesso de seus cidadãos à internet. Já o caso norte-americano diz respeito a um estado nanico cujo caso de corrupção teve pouquíssima reverberação pública e política. Em suma, nessa competição da infâmia, as cartas pareciam marcadas para o Brasil vencer. Não foi dessa vez, contudo, mas ficou com um honroso segundo lugar.

Há algo mais a se dizer sobre a falta de propósito e a distorção dos resultados produzidos pela votação da TI. Em contextos altamente politizados, como os do Brasil atual, EUA, Ucrânia e tantos outros países, a internet reflete ou mesmo intensifica a radicalização encontrada na política. Pesquisas sobre temas nas redes sociais feitas durante o período eleitoral e durante as manifestações de 2013 mostraram a existência clara de pelo menos dois grandes grupos de internautas que trocam informações endogenamente: um petistófilo e outro tucanófilo, ou seria melhor dizer Petistófobo, pois se define mais pelo ódio ao PT do que pela adesão imediata ao PSDB. Mas se a TI coloca em votação somente o “escândalo da Petrobrás”, então os 11900 eleitores brasileiros que votaram nele eram provavelmente em sua esmagadora maioria do campo petistófobo. Em outras palavras, um internauta petistófilo não teria incentivos para votar particularmente porque a TI sequer listou o Mensalão Tucano, ou o Trensalão, ou a Privataria Tucana, etc. Em suma, o que revela essa votação? Que internautas petistófobos curtem o site da TI.

Não obstante o parco valor da votação promovida pela TI, a grande mídia brasileira noticiou em massa. Deu no Valor Econômico, na Folha de S. Paulo, no Estadão (matéria e editorial), no Jornal Hoje e no Jornal Nacional. Nenhum desses meios cometeu o abuso de tomar votação por pesquisa, como fez o editorial do Estadão, mas todos noticiaram essa eleição mal-ajambrada, para dizer o mínimo, da Transparência Internacional como uma notícia relevante. O Jornal Nacional deu o tom. Afetando uma seriedade de personagem de dramalhão mexicano, William Bonner abre a edição do dia 10 de fevereiro com as seguintes palavras: “Nesta quarta-feira (10), a imagem da empresa que já foi orgulho brasileiro se transformou em cinzas. O mundo conheceu o resultado de uma enquete que a ONG Transparência Internacional organizou na internet”.

A grande mídia nacional e algumas de suas fontes reclamam para si credibilidade. Contudo, o que entregam na prática é um produto opaco contaminado de distorções e inverdades. Até quando a democracia brasileira vai suportar essa empulhação?

*Instituto de Estudos Sociais e Políticos - IESP
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Uma breve história do transporte coletivo e as origens de suas contradições

Todos os anos a população das cidades se depara com a questão do aumento no custo do transporte coletivo (rodoviário ou metroviário, principalmente). De um lado, empresas que prestam o serviço alegam o aumento dos custos operacionais e a necessidade de inserir no sistema novas tecnologias, além de adquirir novos equipamentos. De outro, a população que utiliza esses serviços alegando que o custo de vida tem aumentado e que os serviços de transporte não atendem suas necessidade a contento. Para compreender esse debate é importante analisar o contexto em que o serviço e os segmentos envolvidos se encontram, sob pena de dar a diversos fenômenos que não são justos, tal descrição.
O primeiro serviço de transporte coletivo de que se tem notícia foi fundado em Nantes (França), no ano de 1826, por Stanislav Baudry. O objetivo nada tinha de nobre: Transportar as pessoas que se encontravam no centro da cidade até os banhos coletivos de sua propriedade em Richebourg. Os veículos que faziam esse transporte foram denominados com inspiração na palavra latina omnibus, que significa “para todos”. Daí vem a primeira contradição desse tipo de serviço.
Embora o termo “transporte público” dê a entender que o serviço pertence a todos/as, na verdade, o serviço se pretende desde o início a resolver um problema particular que é a mobilização de clientes e/ou mão-de-obra (na época, o transporte de clientes à propriedade de Baudry). Em resumo, o transporte coletivo serve economicamente falando para atender a interesses de corporações e não de trabalhadores/as.
Cabe destacar aqui que a invenção de Baudry lhe foi tão lucrativa que o mesmo abandonou o negócio de banhos para se dedicar exclusivamente a este, que tornou-se um negócio familiar que se espalhou por Paris, Lyon e Bordéus. É quando surge a segunda contradição do sistema: os oligopólios. Tradicionalmente o serviço de transporte coletivo, seja dentro de um determinado município, seja em distâncias mais longas foi oferecido por empresas majoritariamente familiares, passadas de pai para filho, o que estimula esse setor a ter pouca ou nenhuma concorrência, uma vez que geração após geração as empresas buscam perpetuar seus serviços nos espaços onde atuam.
Como todos/as sabemos, entre as grandes justificativas liberais para a manutenção do Capitalismo está a livre concorrência, que serviria para mediar os interesses e evitar a exploração excessiva por aqueles/as que detêm os meios de produção. O problema é que o Capitalismo sempre dá um “jeitinho” de suprimir esse contrapeso e no caso dos sistemas de transporte coletivo, não é diferente. Muitas são as táticas utilizadas para garantir a paz entre as empresas que exploram as concessões públicas. Com a evolução da administração pública e a afirmação de seus princípios, as empresas foram se especializando em combater de forma inteligente e velada os efeitos de medidas que viessem a estimular a concorrência, como as licitações, por exemplo. Diante de um cenário dominado por oligopólios firmados em seus mercados há décadas, novos/as investidores/as são desencorajados/as a competir e quem já está no esquema pode contar com uma “ajudinha”, desde que se comporte.
Essas ajudinhas vêm da atuação em bloco, que pode se dar de diversas formas: delimitação de áreas de interesse dentro do espaço urbano, instituição de cobrança antecipada através da bilhetagem eletrônica (ou alguém acredita que o dinheiro que pagamos fica lá paradinho sem render juros?) ou mesmo um recurso simples, como a Câmara de Compensação Tarifária (CCT) que funcionou por mais de vinte anos na Região Metropolitana de Recife:
“Cada empresa apresenta, mensalmente, uma tabela com as quilometragens rodadas em todas as linhas. E também apresentam o faturamento apurado em todas as linhas, com venda antecipada (em dinheiro), posterior (vales) e número de gratuidade (idosos e deficientes físicos). A EMTU, através de uma planilha de custos, chega a um índice do custo por quilômetro, que toda empresa vai multiplicar à quilometragem que rodaram seus ônibus, para saber quanto recebe na CCT. Se o faturamento for superior ao custo, ela devolve parte do dinheiro para compensar as empresas onde o faturamento foi menor que os custos.”
Fonte: http://www2.uol.com.br/JC/_1998/1307/ec1207n.htm
Para além dessas questões empresariais, é preciso entender outros fatores advindos da expectativa da sociedade em relação a esses serviços. Durante muito tempo o povo foi enganado pelo argumento de que o transporte seria público, ou seja, estaria aí para atender aos interesses coletivos Esse foi o argumento utilizado para a instituição da CCT, para a consolidação de incentivos e renúncias feitas pelo Estado em favor de empresas do setor e para justificar a urgência em manter o serviço até mesmo quando acarreta em ônus excessivo para a coletividade. Além disso, com o passar do tempo, o entendimento do papel social do transporte como garantidor do direito de ir e vir e como meio de acesso à Educação, à Saúde, ao Trabalho, à cidade e outros direitos fez com que os movimentos sociais dessem prioridade à luta pela garantia do transporte e para a melhoria da qualidade dos serviços oferecidos.
Ônibus lotados, inseguros, sem manutenção adequada, poluentes, com péssimas condições de trabalho para motoristas e cobradores/as, onde mulheres são assediadas, sem horário definido e com outros problemas graves, fazem parte do cotidiano do/a trabalhador/a brasileiro/a e contribuem para um estado de coisas que já não satisfaz a grande maioria da população. Mesmo uma parte da classe trabalhadora que poderia buscar a solução individual para o problema do transporte sabe que colocar mais veículos nas ruas só deterioraria ainda mais a infraestrutura de transporte, aumentaria os gastos públicos com a mesma e ainda dificultaria mais ainda a fluidez do trânsito (principalmente nas médias e grandes cidades). Uma parte menos atenta a essas questões, faz sacrifícios e enche o bolso de instituições financeiras, pagando altos juros por financiamentos para veículos automotores, sem perceber a dimensão dos danos causados a si e à sociedade, atingindo inclusive as gerações futuras e tudo isso porque o transporte dito público, nada tem de público (exceto o financiamento) e de funcional (funciona satisfatoriamente apenas para dar lucros em níveis bancários às empresas que o exploram).
Não é por acaso que a última grande onda de protestos realizadas por camadas populares iniciou-se com uma jornada contra o aumento do custo do transporte coletivo. As pessoas estão cansadas de histórias como a de Camila Mirele Pires da Silva, estudante da UFPE que tinha 18 anos, quando era transportada por um ônibus lotado na BR 101, ou a de Harlynton dos Santos, estudante da UFRPE que foi arremessado de um ônibus no Terminal Integrado do Cais de Santa Rita, também em 2015, na mesma cidade. Esses são apenas dois exemplos que chegaram às redações, possivelmente por fazerem parte de ambientes institucionalizados com determinado destaque nos meios de comunicação, de fatos que ocorrem todos os dias nas periferias e centros de nossas cidades.
O aumento da participação popular nos organismos de controle social com poder decisório, a reorganização dos sistemas de transportes com uma evidente modificação na sua lógica, valorização de profissionais, humanização, corte de custos e aumento da qualidade e o fim do financiamento privado de campanhas, que permite a troca de favores entre empresários/as que prestam esse serviço e gestores/as públicos/as, são necessidades urgentes do povo brasileiro, que tem demonstrado isso com muita força nas ruas e precisa continuar.
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Marcelo Serra Diniz é Vice-Presidente do Centro Acadêmico de Comunicação Social Álvaro Lins do CAA/UFPE.
Por Marcelo Serra Diniz
para o Acerto de Contas

A inusitada história de como João se tornou um maldito


João acordou na segunda-feira na hora de sempre. Enquanto tomava o café da manhã, ligou a televisão para assistir ao jornal matinal. Minutos depois, derramou a xícara na toalha branca da mesa da cozinha: ele era a estrela do noticiário.

Uma estrela amaldiçoada.

Com a voz flexionada no modo alegria, o apresentador anunciava que uma enorme operação policial cercava, naquele momento, o condomínio onde João morava, e que os agentes da lei e da ordem carregavam uma ordem judicial para vasculhar o seu apartamento, apreender o que supusessem provas de seu inominável crime, e, por fim, o prendessem.


A sorte, se é que, numa situação dessas a sorte dá as caras, é que João, naquele fim de semana, tinha ido visitar os seus pais - e, portanto, não estava em seu apartamento.

João, depois de ver e ouvir a notícia de que era um criminoso procurado, tentou obter mais informações sobre esse fato absolutamente extraordinário, e ligou o notebook que carregava em toda viagem que fazia.

Era tudo verdade, lá estava ele em todos os sites noticiosos, fotos antigas e mais novas, manchetes escandalosas, declarações contundentes de pessoas que conhecia e desconhecia sobre falcatruas que nunca supôs que fosse capaz de praticar. 

Naquele momento João percebeu que, fosse ou não preso, a sua vida, pelo menos a vida que conhecia até então, havia acabado, para ele e sua família. 

João, que dias antes soubera, por meio de um colega de trabalho, que algumas pessoas desconhecidas haviam perguntado sobre seus hábitos ("ele sai cedo do trabalho, que caminho faz até sua casa, usa carro, ônibus ou bicicleta?"), suas preferências ("ele bebe, é vegetariano, come carne vermelha, dá gorjeta ao garçom?"), até mesmo sobre sua família ("tem filhos pequenos, estudam onde, sua mulher trabalha?"), sentiu seu coração disparar e uma onda de calor tomar conta de sua cabeça.

Foi quando, num choro convulso que deixou seus pais, testemunhas mudas de sua aflição, perplexos, sem fala, sem ação, que João compreendeu o que se passava com ele.

Refeito do abalo nervoso, chamou seus pais para perto de si, e numa voz baixa, quase infantil, disse apenas uma frase, antes de se despedir:

- Eles descobriram que eu existo.

E foi embora, passos lentos, cabeça baixa, como se estivesse conformado em fazer, agora, parte dos malditos.
http://cronicasdomotta.blogspot.com.br/2016/02/a-inusitada-historia-de-como-joao-se.html