sábado, 8 de novembro de 2014

Você sabe o que é o bolivarianismo?

Palavra da moda no Brasil é usada por muita gente que não faz ideia de seu significado. Entenda o que é bolivarianismo e por que ele nada tem a ver com "ditadura comunista" 
 
 
Roberto Stuckert Filho/PR
dilma maduro
 

Em encontro de maio de 2013, Dilma recebe quadro do ex-presidente Hugo Chávez do atual presidente venezuelano, Nicolás Maduro
Após ser apropriado pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, o termo originado do sobrenome do libertador Simón Bolívar aterrissou no debate político brasileiro. São frequentes as acusações de políticos de oposição e da mídia contra o governo federal petista. Lula e Dilma estariam "transformando o Brasil em uma Venezuela". Mas o que é o tal bolivarianismo de que tanto falam? É um palavrão? O Brasil é uma Venezuela? Bolivarismo é sinônimo de ditadura comunista? Antes de sair por aí repetindo definições equivocadas, leia as respostas abaixo:

O que é bolivarianismo?

O termo provém do nome do general venezuelano do século 19 Simón Bolívar, que liderou os movimentos de independência da Venezuela, da Colômbia, do Equador, do Peru e da Bolívia. Convencionou-se, no entanto, chamar de bolivarianos os governos de esquerda na América Latina que questionam o neoliberalismo e o Consenso de Washington (doutrina macroeconômica ditada por economistas do FMI e do Banco Mundial).

Bolivarianismo e ditadura comunista são a mesma coisa?

Não. Mesmo considerando a interpretação que Chávez deu ao termo, o que convencionou-se chamar bolivarianismo está muito longe de ser uma ditadura comunista. As realidades de países que se dizem bolivarianos, como Venezuela, Bolívia e Equador, são bem diferentes da Rússia sob o comando de Stalin ou mesmo da Romênia sob o regime de Nicolau Ceausescu. Neles, os meios de produção estavam nas mãos do Estado, não havia liberdade política ou pluralidade partidária e era inaceitável pensar diferentemente da ideologia dominante do governo. Aqueles que o faziam eram punidos ou exilados, como os que eram enviados para o gulag soviético, campo de trabalho forçado símbolo da repressão ditatorial da Rússia. Na Venezuela, por exemplo, nada disso acontece. A oposição tem figuras conhecidas como Henrique Capriles, Leopoldo López e Maria Corina Machado. Cenário semelhante ocorre na Bolívia, no Equador e também no Brasil, onde há total liberdade de expressão, de imprensa e de oposição ao governo.

Foi Chávez quem inventou o bolivarianismo?

Não. O que o então presidente venezuelano Hugo Chávez fez foi declarar seu país uma "república bolivariana". A mesma retórica foi utilizada pelos presidentes Rafael Correa (Equador) e Evo Morales (Bolívia). A associação entre bolivarianismo e socialismo, no entanto, é questionável segundo a própria biógrafa de Bolívar, a jornalista peruana Marie Arana, editora literária do jornal americano The Washington Post. De acordo com ela, esse “bolivarianismo” instituído por Chávez na Venezuela foi inspirado nos ideais de Bolívar, tais como o combate a injustiças e a defesa do esclarecimento popular e da liberdade. Mas, segundo a biógrafa, a apropriação de seu nome por Chávez e outros mandatários latinos é inapropriada e errada historicamente: “Ele não era socialista de forma alguma. Em certos momentos, foi um ditador de direita”.

O que se tornou o bolivarianismo na Venezuela?

Quando assumiu a Presidência da República em 1999, Chávez declarou-se seguidor das ideias de Bolívar. Em seu governo uma assembleia alterou a Constituição da Venezuela de 1961 para a chamada Constituição Bolivariana de 1999. O nome do país também mudou: era Estado Venezuelano e tornou-se República Bolivariana da Venezuela. Foram criadas ainda instituições de ensino com o adjetivo, como as escolas bolivarianas e a Universidade Bolivariana da Venezuela.

Mas esse regime que Chávez chamava de bolivarianismo era comunista?

Não, apesar de o ex-presidente venezuelano ter usado o termo "Revolução Bolivariana" para referir-se ao seu governo. A ideia era promover mudanças políticas, econômicas e sociais como a universalização à educação e à saúde, além de medidas de caráter econômico, como a nacionalização de indústrias ou serviços. Chávez falava em "socialismo do século XXI", mas o governo venezuelano continua permitindo a entrada de capital estrangeiro no País, assim como a parceria com empresas privadas nacionais e estrangeiras. Empreiteiras brasileiras, chinesas e bielo-russas, por exemplo, constroem moradias para o maior programa habitacional do país, o Gran Misión Vivienda Venezuela, inspirado no brasileiro Minha Casa Minha Vida.

O Brasil "virou uma Venezuela"? 
Esta afirmação não faz sentido. O Brasil é parceiro econômico e estratégico da Venezuela, mas as diretrizes do governo Dilma e do governo de Nicolás Maduro são bastante distintas, tanto na retórica quanto na prática.
Vi, no: http://contrapontopig.blogspot.com.br/2014/11/contraponto-15275-voce-sabe-o-que-e-o.html

O que aconteceria na Suécia com o juiz parado numa blitz no Rio



A agente de trânsito e o juiz

Por que o Rei não fez o teste do bafômetro na hora?”, perguntou certa vez um repórter do jornal sueco Expressen ao Rei da Suécia, Carl XVI Gustaf, no dia seguinte a um pequeno acidente de trânsito protagonizado pelo monarca. Um dia normal na Suécia, onde autoridades não têm complexo de Deus e a síndrome do ”você-sabe-com-quem-está-falando” é tão improvável quanto a volta dos mortos ou a autocrítica dos cretinos.

O episódio da agente de trânsito condenada por danos morais após abordar um juiz em uma blitz da Lei Seca, na zona sul do Rio de Janeiro, demonstra que alguns magistrados brasileiros parecem pensar que são deuses – e que muitos têm a certeza de que são.

Quando foi parado, o juiz e guardião da lei João Carlos de Souza Corrêa dirigia sem a carteira de habilitação, sem placa no carro, e sem os documentos do veículo. Diante do óbvio delito, a agente do Detran Luciana Silva Tamburini informou o juiz que o carro teria que ser apreendido. Houve um entrevero verbal. Segundo Luciana, o juiz, irritado, se identificou como magistrado e deu voz de prisão a ela. O juiz reclama que a agente teria dito que ele era ”juiz, mas não Deus”. O caso ocorreu em 2011.

O desembargador José Carlos Paes, da 14a. Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado do RJ, condena agora Tamburini a pagar R$ 5 mil ao juiz, por ter ”desafiado a própria magistratura e tudo o que ela representa”.

Antes que alguma idéia de se conceder um auxílio-divindade a juízes pegue, manda a lógica concordar que o respeito deve pautar – em mão dupla – a relação entre agentes que trabalham para fazer valer a lei e magistrados que têm o dever de defender o primado da lei. Assim como a relação entre qualquer cidadão e qualquer autoridade.

Mas manda a sensatez que se modernize o conceito de ”autoridade”, em uma sociedade já farta de carteiradas. Antes que seja condenado à morte o respeito da população pela sua Justiça.

Vejamos o caso da Suécia, por exemplo.

Neste país escandinavo, não existe autoridade pública. O que existe é servidor público.

Juízes, políticos, militares, funcionários públicos de alta patente – ninguém está acima de nenhum outro cidadão, e ninguém tem direito a tratamento diferenciado. As leis e os bafômetros são iguais para todos.

A régia exceção é o velho rei, com seu privilégio de dias contados: nem a Rainha Silvia, nem a herdeira da Coroa sueca e nem seus irmãos são imunes aos apitos dos guardas de trânsito e aos rigores da Justiça.

Assim foi que, sem medo de exercer seu ofício, um guarda parou no trânsito a princesa Madeleine, irmã da herdeira da Coroa, quando ela dirigia um Volvo XC 60, da frota real, na faixa reservada aos ônibus no centro de Estocolmo. Madeleine tinha pressa: faltavam quatro dias para o seu casamento com um plebeu americano, e pela lei aquele evento de grandeza real dava permissão especial aos carros da Corte de trafegar na faixa exclusiva. Mas o agente de trânsito desconhecia a tal permissão, e a punição foi diligentemente aplicada naquele verão de 2012.

A princesa foi multada por usar a faixa de ônibus

”Já estamos emitindo uma multa no valor de mil coroas suecas (cerca de R$ 345)”, disse o policial Lars Lindholm.

Consumado o fato, Madeleine seguiu seu caminho. Coube então ao porta-voz da Corte lembrar à polícia a permissão especial que dá de fato aos carros da frota real o direito de dirigir na faixa reservada a ônibus em ocasiões extraordinárias, como dias de visita oficial ao país. E o casamento real de Madeleine, com a chegada de centenas de aristocratas e autoridades estrangeiras à capital sueca, configurava uma dessas ocasiões especiais.

”A princesa não tentou alegar nenhum tipo de imunidade”, destacou o porta-voz.

”Devido às circunstâncias especiais deste caso, a multa será retirada”, comunicou então o porta-voz policial Hans Brandt.

Madeleine livrou-se assim, no último minuto, da multa policial.

Mas não faltam exemplos, na Suécia, de punições exemplares a ”autoridades” públicas.

Em 2010, o deputado Sture Andersson, do Partido do Centro (Centerpartiet), foi parado pela polícia na cidade de Skellefteå quando dirigia seu carro sob efeito de álcool. Como manda a lei, soprou o bafômetro. O teste constatou que Sture tinha naquele momento um nível de álcool no sangue de 1,64% - muito acima do limite máximo de 0,02% estabelecido pela lei sueca. A punição: o político foi condenado a um mês de prisão, além do pagamento de multa de 37 mil coroas suecas (cerca de R$12,8 mil) e das custas processuais.

Sture tentou apelar da decisão junto ao Supremo Tribunal da Suécia. Sem resultado: o Supremo confirmou a sentença, e o deputado foi para o xadrez.

Em 2012, a polícia abordou um juiz durante uma blitz na região de Växsjö, e pediu que ele soprasse o bafômetro. O teste acusou 0,58% de álcool no sangue. Imediatamente, o policial confiscou a carteira de habilitação do juiz, que também foi condenado a pagar multa de 30 mil coroas suecas (cerca de R$10,3 mil).

São vários os casos de autoridades que, na Suécia, são tratadas como qualquer cidadão. Horror, horror.

Em 2010, o próprio chefe regional da polícia, jurista e reitor da Escola Nacional da Polícia Sueca, Göran Lindberg, foi preso e condenado a seis anos de prisão, por crimes sexuais.

”O problema no Brasil é que ainda existe uma inversão de valores sobre o que é ser uma autoridade pública”, diz o policial brasileiro Gustavo Fulgêncio, que desde 2007 trabalha na divisão internacional da polícia sueca.

”A autoridade pública brasileira não quer aceitar o fato de que a autoridade da qual ela está imbuída vem dos cidadãos, e que por isso ela deve trabalhar para o povo. Este é o sentido democrático de autoridade. É o povo que paga o meu salário, então eu trabalho para o povo. No Brasil, ainda sobrevive o conceito de que a autoridade está acima dos cidadãos: ’agora eu sou uma autoridade, e você está abaixo de mim´”, observa o policial, que é também aluno do curso de Ciências Políticas da Universidade de Estocolmo.

Casos como o episódio do juiz-que-não-é-deus jamais aconteceriam na sociedade sueca, diz Gustavo, que antes de chegar à Suécia no ano 2000 trabalhou dez anos na polícia militar de Pernambuco:

”Este tipo de situação não acontece por aqui. E se um juiz ou um político sueco se recusassem a soprar o bafômetro, por exemplo, nós os levaríamos diretamente à delegacia para fazer o exame de sangue”.

”A lei aqui é para todos”, destaca o policial brasileiro, com a devida ressalva à exceção do rei.

Pela lei sueca, o rei Carl XVI Gustaf deveria ter permanecido na cena do acidente de trânsito em que se envolveu, a fim de realizar o teste do bafômetro – esta é a norma para todos os cidadãos.

”O rei deveria ter feito o teste a fim de dar o exemplo, apesar de ser o único que não é obrigado a cumprir esta norma”, disse o funcionário do Vägverket (Departamento de Trânsito sueco) Hans Laurell à época do acidente, ocorrido em 2005.

Abordado pelo repórter do Expressen sobre o bafômetro, o soberano optou pela fleuma e o silêncio real. O jornal estampou em sua manchete: ”O Rei deveria ter soprado o bafômetro”. E ninguém foi processado, nem condenado, por abuso ou desrespeito ao Chefe de Estado sueco.

No Brasil, o êxito da ”divina vaquinha”, a campanha virtual organizada com a hashtag #juiznaoehdeus# a fim de coletar doações para o pagamento da multa imposta à agente do Detran, é um recado claro de que a sociedade está mais atenta aos seus direitos: ao lidar com o cidadão, a autoridade pública também precisa saber com quem está falando.


Sobre o Autor

A jornalista brasileira Claudia Wallin, radicada em Estocolmo, é autora do livro Um país sem excelências e mordomias.
Diário do Centro do Mundo

República do carteiraço


aecio_detetive01República dos Doutores e, via de consequência, do carteiraço, não nasceu com o episódio do juiz que deu voz de prisão à policial que o pegou em flagrante descumprimento à lei.
Lembro sempre que quando cheguei do interior havia três possibilidades de se cursar Direito em Porto Alegre: UFRGS, PUC e Unisinos. Na UFRGS só entrava quem tivesse cursado bons colégios de segundo grau e cursado bons cursinhos pré-vestibulares. Nas outras duas era fácil de entrar, difícil de pagar e de sair. Então, de que classe saíam aqueles que depois viriam ocupar cargos proeminentes nas instituições públicas? São muito poucos os que conseguem furar o bloqueio econômico. Geralmente por muito esforço pessoal e uma boa dose de sorte. Sem contar com o fato de que muitos que conseguem furar o bloqueio acabam por encampar a ideologia de que só o esforço pessoal basta, e que se alguém não conseguiu deve-se ou ao pouco esforço ou a falta de sorte, sendo que a sorte também passa por ser um fator que só deve acompanhar quem merece. É a tal de meritocracia. A visão de castas foi devidamente documentada no episódio onde um Ministro do STJ, Ari Pargendler, gaúcho, formado na UFRGS, tratou um estagiário na base do carteiraço, como se fosse de uma casta inferior.
Por aí se identifica de onde vem todo ódio de classe aos programas de inclusão social. Nem me refiro ao Bolsa Família, mas ao PROUNI, ENEM, Cotas Raciais. Acredito que nossas instituições melhorarão e se tornarão mais democráticas e sensíveis às demandas sociais à medida que mais gente que ascende das classes menos favorecidas começarem a ter oportunidade de ocupar a cúpula de nossas instituições. O exemplo mais concreto deu-se com a ascensão de Lula à Presidência. Mesmo sem poder dar um cavalinho de pau no rumo dos destinos dos recursos públicos, mudou o foco das políticas sociais. A abertura de possibilidades às classes médias baixas acirrou o preconceito das classes médias altas por terem mais gente com a mesma formação com quem competirem. O ódio da classe médica ao Mais Médico tem a mesma raiz. A supremacia branca e mercantilista da medicina viu nos médicos negros cubanos algo incompatível com a medicina. E, de fato, há poucos negros médicos no Brasil. Algo que deverá mudar com a política de inclusão social, via PROUNI, e mesmo nas cotas.
Durante a campanha eleitoral deste ano viu-se claramente em que consiste o carteiraço. Ninguém se perguntou como Aécio Neves pode ocupar um cargo em Brasília mesmo estudando no Rio de Janeiro. Não houve escândalo para boa parte dos eleitores saberem que Aécio Neves foi nomeado pelo primo, Francisco Dornelles, quando ainda tinha 25 anos, vice-presidente da Caixa Loterias. Com esta mesma idade ganhou de José Sarney uma rádio. E houve quem se escandalizasse que Sarney, com um broche da Dilma, tivesse votado em Aécio…
A pergunta relevante a respeito de abuso de autoridade e porque estas coisas continuam acontecendo no Brasil a Folha deveria de interrogar por que cargas d’água Aécio secretário do avô haveria de ter uma carteira de policial?!
Se um candidato à Presidência não precisa dar satisfação dos seus carteiraços por que um juiz haveria de dar quando usa do mesmo expediente?
Data de nascimento da República dos doutores: 11 de Agosto de 1827, quando D. Pedro I, ao instituir os primeiros Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, consta no artigo 9 da Lei de 11 de Agosto de 1827, o seguinte:
Art. 9.º – Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bachareis formados. Haverá tambem o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem poderão ser escolhidos para Lentes.
EDITORIAIS

Autoridade abusada

O movimento de solidariedade foi rápido e decisivo. Em poucos dias, mais de R$ 14 mil se arrecadaram por meio das redes sociais para que a agente de trânsito Luciana Tamburini não pagasse do próprio bolso a indenização imposta pela Justiça do Rio de Janeiro.
Fora condenada, pelo mais alto tribunal de seu Estado, por um suposto abuso de autoridade. Em 2011, numa operação de fiscalização da Lei Seca, Tamburini teve a má sorte de surpreender, dentro de uma Land Rover sem placa e sem documentação, o magistrado João Carlos de Souza Corrêa.
Pela regulamentação em vigor, o veículo teria de ser rebocado. Souza Corrêa invocou sua eminente posição no Judiciário; Tamburini ponderou que "era juiz, mas não Deus". Sentindo-se insultado, o magistrado lhe deu voz de prisão.
Para recorrer ao clássico bordão analisado pelo antropólogo Roberto DaMatta, Tamburini não sabia com quem estava falando. Se soubesse, teria talvez conhecimento de outros episódios envolvendo aquele representante da Justiça.
De acordo com reportagem do jornal "O Globo", publicada em 2007, Souza Corrêa teria chamado a Polícia Federal para resolver uma pendenga com o comandante de um transatlântico de turismo.
O navio estava atracado em Búzios (RJ), e o magistrado julgara-se no direito de subir a bordo para fazer compras no "free shop". A conveniência, de uso exclusivo dos passageiros, tinha as portas cerradas; o juiz exigiu que as abrissem.
Diante da recusa do comandante, Souza Corrêa convocou a PF, não se sabe se para intimidar seu adversário ou se para organizar alguma busca e apreensão entre as mercadorias do "free shop".
Ironicamente, é a agente de trânsito, e não Souza Corrêa, quem termina condenada por abuso de autoridade. Numa decisão tomada já em segunda instância, a Justiça fluminense ratificou o entendimento de que Luciana Tamburini ofendeu a função que o magistrado "representa para a sociedade".
Caberá ao Conselho Nacional de Justiça reexaminar os fatos. Seja qual for o desfecho do caso, dele ressalta o contraste entre dois modelos de organização social.
Um, arcaico, em que a aplicação das leis varia segundo o status de quem nelas se vê enredado; e outro, em que todo cidadão é tratado igualmente, em seus direitos e deveres, pelo Estado.
Menos mal que, aos poucos, cresça a condenação aos hábitos do "você sabe quem está falando?", assim como o empenho de pessoas capazes de enfrentá-los com o devido desassombro.
Vi, no: http://fichacorrida.wordpress.com/2014/11/08/repblica-do-carteirao/

O Bolsa Imprensa e a mídia do dinheiro fácil


Fernando Brito, Tijolaço  

Ontem, logo após a entrevista da Presidenta Dilma Rousseff, postei aqui minha sugestão que o tão desejado corte nas despesas públicas comece pela mídia.

Hoje, tenho a ótima companhia de Paulo Nogueira, do Diário do Centro do Mundo que aprofunda e quantifica o que chama de “Bolsa Imprensa” que os governos brasileiros sempre concederam ao baronato de uma mídia decadente – em qualidade e controle da comunicação – neste país.

Ninguém está sugerindo que se pare de veicular publicidade nos veículos privados, ou que para isso eles apoiem o governo.

Mas há medidas de austeridade a tomar.

É muito “bonito” criticar o gasto de R$ 1 bilhão em obras públicas e receber R$ 1 bilhão (só no 1° turno, R$ 839 milhões), sem esforço algum, pela veiculação do horário eleitoral em suas concessões públicas de rádio e televisão, sem que para isso gaste um ceitil ou deixe de faturar outros, porque não me consta – e duvido e faço pouco – que suas tabelas de preço baseadas em grade de programação tivessem sido canceladas. Ou alguém viu a novela sem comerciais, já que o seu horário normal do pago pelos cofres públicos.
Gastar menos e gastar melhor.

Porque não faz sentido que a televisão – leia-se:a Globo – tenha a mesma parcela nas verbas se não tem, faz muito tempo, a mesma participação na comunicação.

Idem o da escolha de perfis de público, que é parte de uma “mídia técnica” e não um fator estranho a ela.

Ou será que um anúncio da Petrobras,  publicado num blog de política e economia, será menos eficiente do que um anúncio na Contigo?

Dinheiro de publicidade é gasto público, tanto quanto qualquer outro. Deve seguir o princípio da economicidade, da eficiência.

Fazer o que se pretende – informar ou promover empresas públicas, comportamentos e atitudes – com o menor gasto possível.

A mídia não quer que o governo mexa no ‘Bolsa Imprensa’

Paulo Nogueira

“O PT  busca golpear as receitas publicitárias dos veículos de informação – o que poderia redundar, no futuro, no controle de conteúdo pelo governo.”
Está na Veja, e raras vezes ficou tão clara a dependência financeira e mental que as grandes corporações jornalísticas têm do dinheiro público expresso em publicidade federal.

Havia, naquela frase, uma alusão à decisão do governo de deixar de veicular propaganda estatal na Veja, em consequência da capa criminosa que a revista publicou às vésperas das eleições.

Era o mínimo que se poderia fazer diante da tentativa de golpe branco da Abril contra a democracia.

Mas a revista fala em “golpear as receitas publicitárias” da mídia corporativa.
A primeira pergunta é: as empresas consideram direito adquirido o ‘Bolsa Imprensa’, o torrencial dinheiro público que há muitos anos as enriquece – e a seus donos – na forma de anúncios governamentais?

Outras perguntas decorrem desta primeira.

Que capitalismo é este defendido pelas empresas jornalísticas em que existe tamanha dependência do Estado e do dinheiro público?

Elas não se batem pelo Estado mínimo? Ou querem, como sempre tiveram, um Estado-babá?

Os manuais básicos de administração ensinam que você nunca deve depender de uma única coisa para a sobrevivência de seu negócio.

E no entanto as grandes empresas de comunicação simplesmente quebrariam, ou virariam uma fração do que são, se o governo federal deixasse de anunciar nelas.

Tamanha dependência explica o pânico que as assalta a cada eleição presidencial, e também ajuda a entender as manobras que fazem para eleger um candidato amigo.

Essa festa com o dinheiro público tem que acabar, e famílias como os Marinhos e os Civitas têm que enfrentar um choque de capitalismo: aprender a andar sem as muletas do dinheiro público.

Ou, caso não tenham competência para sobreviver num universo sem favorecimentos, que quebrem. O mercado as substituirá por empresas mais competitivas.

Não são apenas anúncios: são financiamentos a juros maternais em bancos públicos, são compras de lotes de assinaturas de jornais e revistas, são aquisições enormes de livros da Abril, da Globo etc.

Numa entrevista a quatro jornais, ontem, Dilma disse que o novo governo vai olhar com “lupa” as despesas, para equilibrar as contas e manter sob controle a inflação.

Não é necessária uma lupa para examinar as despesas com publicidade.
Entre 2003 e 2012, elas quase dobraram, segundo dados do Secom. De cerca de 1 bilhão de reais, foram para as imediações de 2 bilhões ao ano.

Apenas a Globo – com audiência em franca queda por causa da internet – recebeu 600 milhões de reais em 2012.

Um orçamento base zero, como os livros de gestão recomendam, evitaria a inércia dos aumentos anuais do governo com esse tipo de despesa.
Murdoch, em seu império mundial de mídia, tem dependência zero de publicidade de governos.

Banco estatal nenhum financia seus empreendimentos, e por isso ele quase quebrou na década de 1990 quando não conseguiu honrar os empréstimos para ingressar na área de tevê por satélite.

Foi obrigado a se juntar a um rival em tevê por satélite. Só agora Murdoch teve os meios para tentar comprar a outra parte, mas o governo inglês negou por conta do escândalo do News of the World.

Ele se bate pelo capitalismo, e pratica o capitalismo.

As empresas jornalísticas brasileiras pregam o capitalismo, mas gostam mesmo é de cartório.

E julgam, pelo que escreveu a Veja, que até o final dos tempos estão aptas a receber o Bolsa Imprensa."

Explicando o crescente risco de esgotamento de outras represas de São Paulo


Explicando o crescente risco de esgotamento de outras represas de São Paulo
Nesta semana, possivelmente como parte de um processo de redução de danos à imagem do Governo de São Paulo, algumas medidas foram anunciadas por Geraldo Alckmin como soluções para contornar a crise hídrica: 1) a interligação dos reservatórios, como solução para o caso de “a água acabar” (de acordo com entrevista dada pelo Governador); 2) a redução da dependência do Cantareira, de forma a fazer com que sua vazão média de saída corresponda à metade do que era antes de a crise ser declarada; 3) a construção de 29 reservatórios (responsáveis pela armazenagem local de água, não pelo aumento de sua produção); 4) a construção de 3 estações de tratamento de água de esgoto com vistas a seu consumo doméstico.
Embora, em tese, algumas dessas iniciativas possam ser vistas como interessantes para, de alguma forma, atuar por sobre a grave crise em questão, chamo-as de factoides por surgirem de forma intempestiva, e por virem a ser implementadas possivelmente após o momento em que a população afetada venha a ficar sem água para suas tarefas mais cotidianas. Vale dizer que a maioria dos reservatórios referentes ao item 3 só ficará pronta daqui a um ano, e as estações de tratamento de água de esgoto só passarão a funcionar em 2016. Poderá ser tarde.
Gostaria de explorar aqui as duas primeiras medidas, em especial a questão da “interligação entre os reservatórios”. A abordagem permitirá com que entendamos algumas dimensões subestimadas da crise, em especial o risco crescente de que todos os demais componentes do Sistema Adutor Metropolitano (para além da Cantareira e do Alto Tietê, integram-no as outras quatro maiores represas que fornecem água para toda a região metropolitana de São Paulo – Rio Grande, Rio Claro, Alto Cotia e Guarapiranga) venham, também, a passar por um processo crítico de esgotamento.
O primeiro elemento, a interligação dos reservatórios, é uma demanda bastante antiga. Trata-se de uma solução que é válida a todo tempo, mas teria sido muito mais adequada se tivesse sido implementada antes do agravamento da crise hídrica. É óbvio que a interligação não significa um aumento global da água disponível, mas ela é importante para tornar o processo de produção do líquido algo realmente sistêmico e integrado. Tivesse sido adotado no passado, hoje o Cantareira, possivelmente, não estaria, já, tendo retirado o seu segundo volume morto.Mas, o que é mais grave, é que a falta de planejamento em sua adoção pode fazer com que – em um contexto de extrema adversidade como o atual – o seu emprego em lugar de outras medidas pode levar ao esgotamento das represas que ajudam aquelas que estão em situação mais crítica.
E por que isso? O que é interessante, ao discutirmos essa medida, é o fato de que ela desnuda um problema subsidiário, pouco comentado pela mídia: nossas “caixas d’água” são pequenas para a demanda populacional. Na verdade, esse é um problema gêmeo a outro, que é a questão da produção de água propriamente dita. Ambas geram o problema do racionamento, e as duas impactam uma na outra com relação à gravidade da questão do desabastecimento. Explico.
A temática da produção de água diz respeito à equalização da demanda por água (pelos cidadãos, de modo geral; pelo comércio; pela agricultura; pela indústria, etc) com a oferta do líquido, quer dizer, o quanto se consegue produzir de água para se atender ao público. De modo geral, esse foi (e é) um dos principais problemas históricos de São Paulo. O que é curioso nele é que em tantas e tantas ocasiões, o racionamento foi decretado enquanto os reservatórios estavam razoavelmente cheios. Isso ocorria porque ou os reservatórios não tinham capacidade de enviar toda a água necessária para as adutoras, ou as adutoras não tinham a disponibilidade necessária para atender a toda uma região. Então os racionamentos eram adotados para que uma localidade fosse plenamente atendida em um momento, para que então outra viesse a sê-lo no dia seguinte, por exemplo.
Já a questão do tamanho da “caixa d’água” (adoto o nome por didatismo) diz respeito à capacidade efetiva de um reservatório. De modo amplo, um reservatório pode ser considerado grande ou pequeno a depender do quanto de água se tira dele, e do quanto de vazão natural ele dispõe (a água que entra a partir dos rios que o formam). Também em linhas gerais, podemos dizer que a segurança hídrica depende do superávit entre essas vazões de entrada e de saída (que podem ser controladas a partir de instrumentos como as curvas de aversão ao risco, que estipulam o quanto do líquido pode ser retirado a depender do nível do reservatório – uma forma de evitar o seu esgotamento).
Na região metropolitana de São Paulo, o racionamento de primeiro tipo foi equacionado como um problema por volta do ano 2000. Ainda assim, até antes da crise hídrica ser percebida, ainda eram comuns os casos de desabastecimento em alguns pontos específicos – i.e., a cobertura de abastecimento não alcançou os 100%, mesmo em São Paulo. Mas, é preciso ponderar que o Governo sempre correu atrás de atender ao crescimento da demanda, jamais conseguindo fazer com que a oferta conseguisse equacioná-la – muito menos abrir uma pequena “vantagem”.
O equilíbrio entre o tamanho da caixa d’água e a produção de água é afetado não só pelas estiagens, que diminuem as vazões de entrada: também um aumento da oferta sem o correspondente incremento das dimensões dos reservatórios também repercute em riscos de déficits. E, a partir desse desequilíbrio inicial, outros maiores podem começar a ocorrer, conforme os reservatórios esvaziam, perdem eficiência em seu processo de transferência de água (que, em geral, ocorre por gravidade) e, então, demandam a retirada de mais água de outros, que se esgotam mais rapidamente. É essa a situação que enfrentamos agora, por exemplo, no Alto Tietê (em especial nas represas de Paraitinga e Biritiba), e no Cantareira (no reservatório intermediário, de Cachoeira).
Por sinal, em 2005, por exemplo, houve a expansão do Alto Tietê, a partir da inauguração das duas represas mencionadas acima. Elas permitiram com que, em tese, a produção de água subisse em 5 m³/s (de forma a fazer com que a oferta quase alcançasse a demanda, que começava a superá-la naquele momento). Essa expansão, na prática, só começou a ocorrer em 2011, quando finalmente foi inaugurada o aumento da capacidade de tratamento da ETA Taiaçupeba. A questão é que essas duas represas, juntas, têm uma capacidade útil de 70 hm³. O sistema inteiro, quando produzia 10 m³/s, tinha aproximadamente 450 hm³. Ele teve a sua capacidade de produção aumentada em mais 50% (mais 5 m³/s), e o seu tamanho em mais apenas 16%. É óbvio, portanto, que esse novo contexto ampliou o seu risco de esvaziamento (especialmente se considerarmos que as vazões naturais não são elevadas o bastante para compensar esse cenário).
Toda essa explicação nos é útil para esclarecer a ideia de que nossas caixas d’água são pequenas para as demandas da população. Mais significativamente, elas são diminutas considerando-se que as expansões promovidas pelos governos tucanos foram pífias ao longo desses 20 anos. Do ponto de vista da expansão da produção, o que se conseguiu foram ou novas outorgas que permitissem retiradas maiores de água, ou melhorias e inovações tecnológicas que ampliassem a eficiência e a produtividade dos reservatórios já existentes.
Em outras palavras, a produção de água foi aumentada, mas a reservação, praticamente não. Nós tínhamos uma produção, em 1998, de algo como 58 m³/s, e agora, até o começo da crise, chegou a 70 m³/s. Esse incremento veio, conforme já comentado, a partir da expansão do Alto Tietê (5 m³/s), da renovação da outorga do Cantareira (mais 3 m³/s), da reversão do Taquacetuba (braço da Billings) para o Guarapiranga (mais 2 m³/s), da ampliação da retirada do Rio Grande (1 m³/s) e de outras pequenas melhorias operacionais.
Ou seja, ampliou-se, nesse anos, a capacidade de produção em cerca de 20,7%, mas e a capacidade de reservação? Em 1998, ela já era bastante similar à atual: apenas houve a enunciada expansão real do Alto Tietê, e de apenas 70 hm³. Se considerarmos os volumes operacionais de todos os reservatórios, ocorreu um incremento, então, de apenas 4,6% (de 1.526 hm³ para 1.596 hm³). O pequeno “pulo do gato”, aí, foi que a nova outorga do Cantareira permitiu a retirada de mais 209 hm³ do Jaguari-Jacareí (o qual, obviamente, não aumentou de tamanho, mas sim passou a ter parte daquilo que era considerado como volume morto em 2004 como volume útil). Considerando-se esse artifício, a “caixa d’água total” teve um aumento de 18,1% ao longo desse período. Trata-se, no entanto, de uma contagem equivocada, que dá uma falsa sensação de expansão, dados os motivos expostos acima.
Se a expansão da produção pode ser considerada, então, como insuficiente, o incremento real da capacidade de reservação não pode ser visto como nada menos do que desprezível. É por isso, então, que se no começo da crise a função da interligação das represas serviria para prolongar o período até o colapso do sistema, neste momento a adoção de tal medida terá ainda menos potencialidade de superar o problema. Pelo contrário, funcionará como uma espécie de “transferência da crise”, acelerando a escassez em outros reservatórios.
Por um lado, a interligação das represas poderia ser útil por permitir com que aquelas que estivessem situadas em regiões em que as médias de chuvas fossem maiores (como o Guarapiranga e o Rio Grande) transmitissem às demais o seu “excedente” de água. Por outro, tendo-se em vista que a situação do Cantareira e do Alto Tietê é absolutamente dramática, a necessidade de auxílio por parte dos demais reservatórios é imensa. E aqui, mais uma vez, voltamos à questão do tamanho das represas. Justamente os dois sistemas em condições mais adversas são os dois maiores: o Cantareira, com uma capacidade total (incluindo até a 3ª cota do volume morto) de 1.459 hm³; o Alto Tietê, com 527 hm³ (já contando com os 10 bilhões de litros do volume morto de Biritiba). Os dois, somados, correspondem a mais de 86% da capacidade total do chamado “Sistema Adutor Metropolitano”. E estão praticamente vazios.
Para piorar, os demais sistemas enfrentam, também, uma situação de escassez relativa – menos grave do que a vivida nesses dois acima, mas também já considerada relevante. Conforme são feitas obras para que os sistemas sejam interligados para salvar o Cantareira (e aqui cabe explicar que não se trata de uma interligação propriamente dita, como poderia ocorrer, mas sim da implantação de boosters e outros equipamentos capazes de enviar a água produzida por um manancial para “mais longe”, de forma a avançar por sobre o território atendido por outro manancial), mais água acaba sendo deles retirada. Em tese, as outorgas concedidas pelo DAEE à SABESP impediriam a extração de mais água do que o estabelecido no documento, mas não sabemos se isso está sendo respeitado nessa situação excepcional (já vimos que no caso do Cantareira os limites de retirada foram desrespeitados, e o mesmo elemento foi questionado, no caso do Alto Tietê, por uma Ação Civil Pública).
O aumento do ritmo das diminuições ocorridas em cada reservatório é um indício de que está, sim, ocorrendo uma saída de água ainda maior do que a existente em condições normais (ou, em hipótese, uma piora significativa das vazões de entrada, o que considero menos provável). A consequência disso é que o problema trágico vivido por Cantareira e Alto Tietê vai alcançando os outros mananciais – os quais são muito menores. A crise hídrica tem o potencial de se tornar, então, um evento cataclísmico ainda muito maior se Guarapiranga, Rio Claro e Rio Grande secarem – mais 7 milhões de habitantes serão afetados, de forma decisiva. E, até onde se sabe, eles não possuem volume morto. A recuperação desses mananciais, então, poderia ser tão lenta quanto a observada para o Cantareira – se ocorrer. Seria a hecatombe que comprovaria a tese, hoje ainda bizarra, de necessidade de evacuação populacional da região metropolitana – e isso em um intervalo de tempo menor do que 1 ano, se as médias de vazão de entrada forem similares às do verão 2013/2014.
Para que tenham uma ideia do cenário atual, em que a crise começa a se tornar clara para todo o sistema produtor – e suas 6 maiores represas – montei a tabela abaixo, a qual reúne uma série de dados relevantes. Explico a seguir.
Na primeira coluna, apresentamos a capacidade total aproximada de cada sistema/reservatório (incluindo, onde cabível – e cognoscível –, as “reservas técnicas”). É possível observar, conforme comentado, que Cantareira e Alto Tietê são muito maiores do que as demais. Na verdade, Alto Cotia e Rio Claro são, praticamente, tanques, já que suas barragens represam muito pouca água. A peculiaridade de Rio Claro é a de que parte considerável das suas vazões de saída advém de outras fontes: apenas 1 m³/s de seus 4 m³/s são oriundos da represa; os demais vêm de captações de rios, de piscinas naturais e até mesmo da interligação com a represa Ponte Nova (a maior do Alto Tietê).
A segunda coluna nos apresenta a quantidade de água disponível no conjunto das represas. Aqui, fui generoso e contabilizei toda a 3ª cota do volume morto do Cantareira como disponível. Observamos que, embora em situação mais do que crítica, Cantareira e Alto Tietê ainda possuem 67,25% de toda a água a ser distribuída para a população – mais um sinal de que a crise é ainda mais séria do que aparenta, e de que não podemos contar, seriamente, com a compensação de outras represas. Ou seja, nas atuais condições, dada a falta de investimentos, é um factoide imenso considerar, como fez o governador, a ideia de se reduzir a dependência do Cantareira (a segunda medida enunciada no começo deste texto).
Aqui cabe explorar um pouco essa questão, conforme prometido. Alckmin havia prometido, até “o início do inverno de 2015” (momento em que, de acordo com meus cálculos, ocorre o esgotamento total do Sistema, se persistirem as condições atuais), que haveria a redução da retirada de água do Cantareira em 50% quando comparado com o que era feito antes da crise – classificando o feito como “fantástico”. Ora, hoje já são retirados 22,5 m³/s (menos, até, nos últimos dias), e a outorga permitia a saída de até 36 m³/s. Ou seja, 62,5%. Até Junho de 2015, apenas mais 4,5 m³/s deixarão de ser captados, diariamente, do Sistema. E essa diminuição dependerá do aumento da produção de outros sistemas: está previsto, por exemplo, o aumento de ajuda do Guarapiranga: mais 1,5 m³/s a partir de Fevereiro de 2015. Parece claro, então, que nem a diminuição da retirada do Cantareira poderá ser suficiente para evitar seu esgotamento, nem as condições dos demais reservatórios permite uma segurança tal que viabilize transferências de vazões sem que suas condições sejam colocadas em risco.
A coluna do “tamanho da caixa d’água” explica em números o que dizia mais acima: nossos reservatórios são pequenos para o tamanho das demandas da população e para as ofertas de água realizadas pela SABESP. Vejam que o Cantareira, apesar de tudo, ainda é o reservatório que mais tem condições de aguentar uma estiagem. Notem como o Guarapiranga, o Alto Cotia e o Rio Claro possuem uma “autonomia” muito menor – ao mesmo tempo em que, por razões óbvias, são aqueles em que as precipitações mais influenciam, relativamente, no volume de água armazenado (área consideravelmente menor para que as chuvas caiam e produzam efeito).
Vale notar, então, quais são os reservatórios que estão “ajudando” o Cantareira: Alto Tietê e Guarapiranga (2,1 m³/s cada), Rio Grande (0,8 m³/s) e Rio Claro (0,7 m³/s). No caso do Alto Tietê, a ajuda começou ainda em Dezembro de 2013 (o que foi anunciado pela mídia apenas em Fevereiro, quando a crise foi publicizada), e depois foi ampliada em Julho. Depois, o Guarapiranga começou a ser utilizado (1,1 m³/s), sendo que agora em Novembro mais 1 m³/s passou a ser retirado – o que acelerará o nível do déficit desse reservatório. Rio Claro e Rio Grande passaram a colaborar em Julho e no final de Setembro, respectivamente. Por esses dados, vemos o quanto a “economia” trazida pelo bônus ainda é absolutamente irrisória: mesmo que consideremos que não haja mais nenhum fator que contribua para a redução da oferta de água (como as válvulas redutoras de pressão), a diminuição da produção de 70 m³/s para 64,4 m³/s significa que houve, apenas, 8% de redução no consumo, caso admitamos uma equivalência plena entre produção e demanda. Há muito o que percorrer na mudança de cultura de uso da água.
Essas retiradas a mais de água, então, impactam o nível global de perdas diárias. Se o Cantareira e o Alto Tietê continuam perdendo bastante de sua capacidade por dia (1,8 bilhão de litros no total, se somados), os demais contribuem com mais de 1,3 bilhão de litros de déficit. O desequilíbrio recente entre oferta e demanda é tão impressionante quanto negligenciado pelos meios de comunicação – são produzidos 64,4 m³/s, mas a demanda supera a oferta em 36,5 m³/s. Trata-se, inequivocamente, de uma situação insustentável, caso as condições permaneçam como as atuais.
E, se mesmo com a redução das vazões de saída do Cantareira é possível observar que seu esgotamento absoluto está próximo (230 dias, no cálculo grosseiro realizado na tabela – 21 de Julho, na estimativa que realizei no artigo que publiquei no começo da semana), o mesmo se torna evidente com relação aos demais reservatórios: em tese, à exceção do Rio Grande, todos podem se esgotar em menos de 100 dias, ceteris paribus. É óbvio que há a probabilidade concreta de que o desabastecimento possa durar mais do que isso, já que estamos entrando no período chuvoso. Mas a preocupação não deve estar no próximo mês, mas em 2015. É impossível não conjecturar sobre o quão severo deveria ser o abastecimento em Abril ou Maio mesmo na situação em que todos os reservatórios estejam, nesse momento, com exatamente o mesmo volume de água que possuem hoje – o que é, sim, uma realidade concreta.
Conforme os outros reservatórios são demandados para além da sua capacidade e começam a secar, será natural que deixem de ajudar uns aos outros, generalizando a situação de colapso, já que o fim do socorro pode significar a volta da radicalização do desabastecimento da represa “ajudada”, e um fôlego momentâneo para aquela que fornecia suporte. Corre-se o risco de se viver em uma contínua “sinuca de bico”, em um permanente xeque-mate da crise hídrica contra a falta de planejamento do Governo do Estado, até o ponto em que a insustentabilidade não possa mais ser camuflada. Se não vivenciarmos, a partir de agora, um contexto hidrológico e pluviométrico olimpicamente favorável, é para esse cenário aterrador para onde, inexoravelmente, caminharemos.
Se há alguma solução para a crise hídrica neste momento, para agora, ela está necessariamente no equacionamento drástico da oferta e da demanda por água. Todas as iniciativas de infraestrutura, mesmo que corretas, demorarão a ser implementadas. Não se pode correr o risco de, simplesmente, deixar a população sem água, esperando até que fiquem prontas. Será fundamental diminuir ao máximo o déficit atual entre entrada e saída de água. É preciso ser realista quanto a isso: se os níveis de todas as represas continuarem diminuindo, haverá uma tendência de que as vazões de entrada também diminuam, e de que as tão comentadas chuvas tenham uma eficácia muito menor do que a usual em aumentá-las neste verão. Não há o menor cabimento em termos um governo com um orçamento de quase 200 bilhões de reais cuja medida de curto prazo mais consistente é anunciar que a “chuva está cada vez mais próxima”. É preciso que tomemos ações que, se talvez já não sejam mais tempestivas, não possam ser vistas, daqui a alguns meses, como meramente cosméticas. Difícil dormir com esse barulho.